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quarta-feira, 15 de abril de 2020

Empresa de telefonia celular vende localização anonima

 Artigo publicado no site THE INTERCEPT BRASIL, por Tatiana Dias, em 13 de Abril de 2020. Acesse original aqui.

"O músico e funcionário público Jarbas da Rocha saiu de casa, em Domingos Martins, interior do Espírito Santo, para ir a Santa Maria do Jetibá, a pouco mais de 50 quilômetros de distância. Lá, tocou com sua banda em abril de 2016 na Festa Pomerana, evento anual que celebra a chegada de imigrantes da extinta Pomerânia na região. Quatro anos depois, eu encontrei esse deslocamento de Rocha em uma planilha vendida pela Vivo à Secretaria de Turismo do Espírito Santo.

Cliente da Vivo, maior operadora de celular do Brasil, Rocha não imaginava que seu celular, monitorando seus movimentos, estava também produzindo dados que a empresa, depois, transformaria em dinheiro.

Na planilha vendida em 2017 ao governo do Espírito Santo, Rocha não é exatamente Rocha. É um indivíduo não identificado, homem, idade entre 50 e 59 anos, que vive em Domingos Martins, cidade de 33 mil habitantes, e vai esporadicamente a Santa Maria de Jetibá, que tem 40 mil. Pertence à classe B e é classificado como integrante de “famílias populares”, uma categoria criada pelo estudo para definir a típica família brasileira de classe média.

Esses dados são “anonimizados”, jura a empresa, e organizados nos chamados “clusters comportamentais”, que agrupam as pessoas segundo suas características sociodemográficas – onde vivem, quanto ganham e como consomem.

A compilação de dados do Espírito Santo, feita em 2016 e 2017, rendeu à Vivo R$ 625 mil. A Secretaria de Turismo comprou os dados com o objetivo de entender como funcionava o fluxo de turistas dentro do estado.

A planilha com as movimentações de abril de 2016, disponível no site da Setur, tem informações pessoais de milhares de pessoas não identificadas. Mas, se combinadas e cruzadas com outras bases, esse monte de informações permite que se chegue a perfis bem específicos. E, assim, a pessoas específicas também. Como Rocha.

Eu encontrei o funcionário público procurando por eventos que aconteceram naquele mês em cidades pequenas como a Festa Pomerana em Santa Maria do Jetibá. Depois, procurei na planilha pessoas que estiveram naquela cidade e que são de outras cidades pequenas, como Domingos Martins. Cheguei a algumas dezenas de pessoas. Coloquei mais um filtro: só homens. Queria encontrar alguém que estivesse na internet e fosse mais fácil de ser localizável em redes sociais – por isso, separei na planilha os dados da operadora apenas gente da classe A e B. Cheguei a um universo de apenas cinco pessoas com essas características: quatro da classe B, uma da A. Cinco que foram a Santa Maria do Jetibá uma única vez, e uma que vai esporadicamente.

A seguir, procurei por posts públicos em redes sociais de pessoas que estiveram na Festa Pomerana. Encontrei a Banda Fröhlich, formada por 12 pessoas – cinco de Domingos Martins. Jarbas Rocha, vocal e saxofone, correspondia às características daquelas cinco pessoas.

‘É fácil reidentificar indivíduos para fins discriminatórios e ilícitos, como perseguição de adversários políticos, golpes financeiros e manipulações eleitorais’.

O celular de contato da banda, da Vivo, é também o de Jarbas. Ele confirmou que era cliente da empresa em 2016, que é da classe B e tem de 50 a 59 anos. Perguntei se ele costumava ir a Santa Maria do Jetibá esporadicamente, para ver se conseguia distingui-lo dos outros quatro da planilha, que haviam estado na cidade uma única vez. Sim, ele confirmou. Tudo indica que aquela linha, filtrada de milhares, é do saxofonista da Banda Fröhlich.

“Hoje, as pessoas sabem de tudo, porque você está nas redes sociais. Então, com certeza você não vai ter uma privacidade 100%”, ele me disse. “Com os aparelhos celulares, você é monitorado 24 horas”.

A Lei Geral das Telecomunicações permite que as operadoras divulguem a terceiros “informações agregadas sobre o uso de seus serviços” desde que elas não permitam a identificação, direta ou indireta, do usuário, nem a violação de sua intimidade. Mas a Secretaria do Turismo capixaba sabia que poderia haver algum questionamento sobre a privacidade dos cidadãos. O órgão chegou a enviar um ofício para a Anatel perguntando sobre possíveis problemas, mas a agência reguladora não viu nenhum problema na venda de informações, feita pela Vivo por meio do programa Smart Steps, contanto que fosse cumprida a lei.

O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, o Idec, pensa diferente. “O programa viola os direitos dos consumidores por influir na sua esfera privada sem autorização e conhecimento”, me disse Diogo Moyses, coordenador do Programa de Telecom e Direitos Digitais do Idec. “Com o compartilhamento amplo e irrestrito dos dados pessoais de milhares de pessoas, supostamente anonimizados, pode-se facilmente reidentificar indivíduos para fins discriminatórios e ilícitos, como perseguição de adversários políticos, golpes financeiros e manipulações eleitorais”, acrescentou.

Perguntei o que Rocha achava de ter sido monitorado sem ter sido avisado pela empresa. “Na realidade, eu não sei o que a gente assina nesses contratos, pois as letras são pequenas, e a gente não tem o hábito de ler”, ele me disse. “Se contempla esse tipo de situação, ok, contudo, se não, eu acho que a empresa não poderia fazer isso, pois está liberando um precedente perigoso e quebrando a privacidade de seus clientes”.

Lá, nas letras pequenas do termo de adesão, os clientes autorizam, sem perceber, que seus dados de localização sejam cedidos a terceiros. A assessoria da Vivo diz que o uso das informações para “construção de soluções estatísticas” é feito por adesão voluntária (ou opt in no jargão tech). Mas, nas lojas da empresa, não é bem assim que funciona. Os vendedores não informam, e, ao preencher o termo com os dados do cliente, já costumam deixar marcada a caixa “eu concordo” para utilização de “dados pessoais e de localização e uso da rede”. Perguntei à Vivo o que exatamente os clientes autorizavam, em que momento eles eram informados e o que estava escrito no contrato. A empresa se limitou a dizer que solicita o consentimento no momento da contratação."

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