Artigo publicado no site THE INTERCEPT BRASIL, por Tatiana Dias, em 13 de Abril de 2020. Acesse original aqui.
"O músico e funcionário público Jarbas da Rocha saiu de casa, em Domingos Martins, interior do Espírito Santo, para ir a Santa Maria do Jetibá, a pouco mais de 50 quilômetros de distância. Lá, tocou com sua banda em abril de 2016 na Festa Pomerana, evento anual que celebra a chegada de imigrantes da extinta Pomerânia na região. Quatro anos depois, eu encontrei esse deslocamento de Rocha em uma planilha vendida pela Vivo à Secretaria de Turismo do Espírito Santo.
Cliente da Vivo, maior operadora de celular do Brasil, Rocha não imaginava que seu celular, monitorando seus movimentos, estava também produzindo dados que a empresa, depois, transformaria em dinheiro.
Na planilha vendida em 2017 ao governo do Espírito Santo, Rocha não é exatamente Rocha. É um indivíduo não identificado, homem, idade entre 50 e 59 anos, que vive em Domingos Martins, cidade de 33 mil habitantes, e vai esporadicamente a Santa Maria de Jetibá, que tem 40 mil. Pertence à classe B e é classificado como integrante de “famílias populares”, uma categoria criada pelo estudo para definir a típica família brasileira de classe média.
Esses dados são “anonimizados”, jura a empresa, e organizados nos chamados “clusters comportamentais”, que agrupam as pessoas segundo suas características sociodemográficas – onde vivem, quanto ganham e como consomem.
A compilação de dados do Espírito Santo, feita em 2016 e 2017, rendeu à Vivo R$ 625 mil. A Secretaria de Turismo comprou os dados com o objetivo de entender como funcionava o fluxo de turistas dentro do estado.
A planilha com as movimentações de abril de 2016, disponível no site da Setur, tem informações pessoais de milhares de pessoas não identificadas. Mas, se combinadas e cruzadas com outras bases, esse monte de informações permite que se chegue a perfis bem específicos. E, assim, a pessoas específicas também. Como Rocha.
Eu encontrei o funcionário público procurando por eventos que aconteceram naquele mês em cidades pequenas como a Festa Pomerana em Santa Maria do Jetibá. Depois, procurei na planilha pessoas que estiveram naquela cidade e que são de outras cidades pequenas, como Domingos Martins. Cheguei a algumas dezenas de pessoas. Coloquei mais um filtro: só homens. Queria encontrar alguém que estivesse na internet e fosse mais fácil de ser localizável em redes sociais – por isso, separei na planilha os dados da operadora apenas gente da classe A e B. Cheguei a um universo de apenas cinco pessoas com essas características: quatro da classe B, uma da A. Cinco que foram a Santa Maria do Jetibá uma única vez, e uma que vai esporadicamente.
A seguir, procurei por posts públicos em redes sociais de pessoas que estiveram na Festa Pomerana. Encontrei a Banda Fröhlich, formada por 12 pessoas – cinco de Domingos Martins. Jarbas Rocha, vocal e saxofone, correspondia às características daquelas cinco pessoas.
‘É fácil reidentificar indivíduos para fins discriminatórios e ilícitos, como perseguição de adversários políticos, golpes financeiros e manipulações eleitorais’.
O celular de contato da banda, da Vivo, é também o de Jarbas. Ele confirmou que era cliente da empresa em 2016, que é da classe B e tem de 50 a 59 anos. Perguntei se ele costumava ir a Santa Maria do Jetibá esporadicamente, para ver se conseguia distingui-lo dos outros quatro da planilha, que haviam estado na cidade uma única vez. Sim, ele confirmou. Tudo indica que aquela linha, filtrada de milhares, é do saxofonista da Banda Fröhlich.
“Hoje, as pessoas sabem de tudo, porque você está nas redes sociais. Então, com certeza você não vai ter uma privacidade 100%”, ele me disse. “Com os aparelhos celulares, você é monitorado 24 horas”.
A Lei Geral das Telecomunicações permite que as operadoras divulguem a terceiros “informações agregadas sobre o uso de seus serviços” desde que elas não permitam a identificação, direta ou indireta, do usuário, nem a violação de sua intimidade. Mas a Secretaria do Turismo capixaba sabia que poderia haver algum questionamento sobre a privacidade dos cidadãos. O órgão chegou a enviar um ofício para a Anatel perguntando sobre possíveis problemas, mas a agência reguladora não viu nenhum problema na venda de informações, feita pela Vivo por meio do programa Smart Steps, contanto que fosse cumprida a lei.
O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, o Idec, pensa diferente. “O programa viola os direitos dos consumidores por influir na sua esfera privada sem autorização e conhecimento”, me disse Diogo Moyses, coordenador do Programa de Telecom e Direitos Digitais do Idec. “Com o compartilhamento amplo e irrestrito dos dados pessoais de milhares de pessoas, supostamente anonimizados, pode-se facilmente reidentificar indivíduos para fins discriminatórios e ilícitos, como perseguição de adversários políticos, golpes financeiros e manipulações eleitorais”, acrescentou.
Perguntei o que Rocha achava de ter sido monitorado sem ter sido avisado pela empresa. “Na realidade, eu não sei o que a gente assina nesses contratos, pois as letras são pequenas, e a gente não tem o hábito de ler”, ele me disse. “Se contempla esse tipo de situação, ok, contudo, se não, eu acho que a empresa não poderia fazer isso, pois está liberando um precedente perigoso e quebrando a privacidade de seus clientes”.
Lá, nas letras pequenas do termo de adesão, os clientes autorizam, sem perceber, que seus dados de localização sejam cedidos a terceiros. A assessoria da Vivo diz que o uso das informações para “construção de soluções estatísticas” é feito por adesão voluntária (ou opt in no jargão tech). Mas, nas lojas da empresa, não é bem assim que funciona. Os vendedores não informam, e, ao preencher o termo com os dados do cliente, já costumam deixar marcada a caixa “eu concordo” para utilização de “dados pessoais e de localização e uso da rede”. Perguntei à Vivo o que exatamente os clientes autorizavam, em que momento eles eram informados e o que estava escrito no contrato. A empresa se limitou a dizer que solicita o consentimento no momento da contratação."
Nenhum comentário:
Postar um comentário